Artigo em destaque: Muro do contraditório nas provas digitais – acesso integral aos dados brutos

Antonio Belarmino Junior Dellano SousaJoaquim Bartolomeu Ferreira Neto

Uma análise da jurisprudência do STF em consonância ao devido processo legal.

Em tempos de virtualização da persecução penal, em que o digital permeia todas as etapas do processo, o advogado criminalista continua a enfrentar um antigo e grave obstáculo: o acesso integral aos elementos de prova já documentados nos autos. Trata-se de um paradoxo processual contemporâneo. Apesar da digitalização judicial, persiste um verdadeiro muro de invisibilidade probatória, que impede a defesa técnica de analisar a integralidade das informações extraídas de dispositivos eletrônicos, especialmente os dados brutos oriundos de interceptações, extrações forenses e outros meios de obtenção de prova digital.

A ilusão do “já documentado” e os limites do contraditório

A expressão “já documentado nos autos”, prevista na súmula vinculante 14 do STF, tem sido interpretada de forma reducionista por diversos magistrados, que restringem o acesso da defesa a meros relatórios em PDF, capturas de tela ou resumos produzidos por autoridades policiais ou peritos oficiais. Contudo, a prova digital, por sua natureza técnica e volátil, exige acesso ao conteúdo integral, com preservação da cadeia de custódia, além da possibilidade de reprodução e auditoria independente.

Hoje, a prática forense em smartphone, por exemplo, utiliza diferentes métodos de extração digital, entre os quais:

Aquisição manual: Método mais simples de aquisição, onde o examinador utiliza o próprio dispositivo para navegar e registra fotos da tela do dispositivo. Essa aquisição não exige ferramentas forenses avançadas, todavia os dados podem facilmente ser modificados e não possuem, em um contexto geral, garantia de integridade, integralidade e autenticidade;
Aquisição lógica: Em um contexto geral, refere-se à extração de arquivos que estão armazenados no celular utilizando de APIs do fabricante para sincronizar o conteúdo do smartphone com o computador. Esse método possibilita o acesso a arquivos multimídia, mensagens de texto, histórico de ligações e outros dados. Embora esse método seja mais confiável que a aquisição manual (se utilizado ferramentas forenses e metodologias validadas) não traz a integralidade dos dados do dispositivo;


Aquisição lógica com downgrade: Tudo da aquisição lógica mais downgrade. No processo de downgrade é instalado versão mais antiga do software alvo e resgatado o backup, de maneira a ultrapassar os mecanismos de segurança do aplicativo atualizado e possibilitar a cópia dos arquivos protegidos (bancos de dados, logs, chaves e etc).;
Aquisição do sistema de arquivos: Procedimento de cópia, geralmente associado a extração completa do sistema de arquivos do smartphone. Esse método de extração possibilita recuperação de dados ocultos ou deletados, bem como dados de usuário e aplicativo que não vem na aquisição lógica ou manual, exemplo: arquivos temporários, caches, registros de aplicativos e etc. Em um contexto geral e contemporâneo, esse método de extração é mais confiável, possui garantia de integralidade, integridade e autenticidade (quando utilizado ferramentas e metodologias validadas) e possibilita auditoria por perito especializado.

Aquisição do sistema de arquivos: Procedimento de cópia, geralmente associado a extração completa do sistema de arquivos do smartphone. Esse método de extração possibilita recuperação de dados ocultos ou deletados, bem como dados de usuário e aplicativo que não vem na aquisição lógica ou manual, exemplo: arquivos temporários, caches, registros de aplicativos e etc. Em um contexto geral e contemporâneo, esse método de extração é mais confiável, possui garantia de integralidade, integridade e autenticidade (quando utilizado ferramentas e metodologias validadas) e possibilita auditoria por perito especializado.
Tais procedimentos produzem um volume massivo de dados, cuja análise é fundamental a utilização de softwares forenses especializados, por exemplo, IPED (desenvolvido pela Polícia Federal), Cellebrite Physical Analyzer ou Magnet AXIOM, e cuja interpretação requer conhecimentos técnicos avançados. Por isso, negar o acesso ao material bruto implica cerceamento de defesa e violação ao contraditório substancial.

A reclamação constitucional 78.571/PI e o precedente garantista do STF

Em recente e paradigmática decisão, o STF, por meio do ministro Edson Fachin, julgou procedente a reclamação constitucional 78.571/PI, reconhecendo o direito da defesa ao acesso integral às mídias e documentos que fundamentaram interceptações telefônicas. O caso contou com a atuação direta de um dos autores deste artigo, como advogado do reclamante.

O STF fixou um importante marco processual:

“Não cabe ao magistrado censurar ou protelar, aprioristicamente, o acesso a material já documentado, sob a justificativa de que seria ‘desnecessária’ sua utilização no atual momento processual. A opção de utilizar ou não, e em que momento utilizar, os elementos de prova existentes é exclusiva das partes…”

Essa compreensão está em consonância com o pensamento de Luigi Ferrajoli, Scarance Fernandes e tantos outros processualistas, ao reafirmar que não há contraditório sem acesso pleno e tempestivo à prova. A defesa não pode ser obrigada a confiar cegamente em relatórios produzidos unilateralmente – o contraditório demanda simetria epistêmica e possibilidade de refutação técnica.

A contribuição de Alexandre Morais da Rosa: Teoria dos jogos e disparidade digital

O professor Dr. Alexandre Morais da Rosa, em sua obra “Guia do Processo Penal Estratégico: De Acordo com a Teoria dos Jogos e o MCDa-C”, defende que o processo penal deve ser lido à luz da racionalidade estratégica. Para ele, o contraditório somente se realiza de forma autêntica quando há simetria de acesso à informação probatória, evitando o que denomina de “disparidade de armas digital”.

Em artigo publicado na ConJur (“Disparidade de armas digital no processo penal híbrido”), o autor alerta que, no contexto digital, a defesa frequentemente é colocada em desvantagem técnica, sem acesso às ferramentas e à íntegra dos dados que a acusação manipula com ampla liberdade. Essa assimetria informacional compromete o devido processo legal e fragiliza o contraditório.

No episódio #259 do podcast Criminal Player, Morais da Rosa reforça a necessidade de que a defesa tenha acesso às mesmas ferramentas forenses e dados brutos que embasaram a denúncia ou decisões cautelares, pois só assim se evita a formação de uma narrativa acusatória blindada.

Conclusão: O garantismo digital como prática cotidiana

Não é admissível que o processo penal funcione como um espetáculo de sombras, onde a prova aparece fragmentada, filtrada ou inacessível à defesa. A cadeia de custódia precisa ser auditável, a prova digital deve ser compartilhada em sua integralidade e a simetria informacional deve ser garantida.

Certo é que os advogados de qualquer investigado, têm direito assegurado ao acesso amplo aos elementos de prova já documentados em autos, ainda que em andamento e sob segredo de justiça, sendo que a ausência de manifestação constitui grave violação e verdadeiro atentado ao exercício da ampla defesa, tudo em consonância com o entendimento sumular consolidado (súmula vinculante 14 – STF) que reconhece a essencialidade da advocacia na atividade jurisdicional do Estado, conforme prevê o art. 133 da Constituição Federal (“O advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”), aliado ainda ao rol de direitos e prerrogativas elencados no art. 7º da lei Federal 8.906/1994, especialmente quanto ao acesso e exame de elementos de investigação de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos em meio físico ou digital.

A decisão do STF na reclamação 78.571/PI representa uma verdadeira ruptura no muro do contraditório e uma oportunidade histórica de reequilibrar o processo penal digital. Cabe aos operadores do direito, especialmente à advocacia criminal, exigir sua plena efetivação – não apenas como jurisprudência, mas como prática forense cotidiana.

Fonte: Migalhas

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